No mais recente episódio do Homo Sem Deus, da Associação Ateísta Portuguesa, trouxemos uma discussão fundamental para o cenário ateísta português, explorando as questões que nos afetam profundamente como sociedade, desde as ingerências religiosas na política até ao impacto das declarações do Papa sobre temas que moldam a nossa realidade. Neste episódio, contámos com a habitual presença do João Monteiro, presidente da Associação, e mergulhámos em debates ricos e desafiantes, analisando criticamente o papel da religião no espaço público e a forma como continua a tentar influenciar a política e a vida das pessoas.
O peso das palavras do Papa
Iniciámos o episódio com uma análise das recentes declarações do Papa Francisco. O Papa, ao regressar da Bélgica, fez uma afirmação extremamente preocupante, apelidando os médicos que praticam interrupção voluntária da gravidez de “assassinos”. A gravidade dessas palavras não pode ser subestimada. Nós, como defensores de uma sociedade laica e livre de ingerências religiosas, ficámos profundamente preocupados com o potencial impacto que tais declarações podem ter na forma como os médicos são vistos e tratados, especialmente num contexto onde a religião ainda tem um peso considerável.
Estas declarações, feitas por um líder religioso que também é chefe de estado, levantam sérios problemas, pois não só incentivam a crítica aberta contra profissionais da saúde, como também abrem a porta para que crentes mais fervorosos adotem posturas agressivas e antagonistas. Em países como os Estados Unidos, já vimos como estas atitudes se traduzem em ataques físicos a clínicas e médicos que realizam abortos, e tememos que este discurso divisivo chegue à Europa. As palavras, como bem sabemos, têm consequências, e, ao serem proferidas por uma figura tão influente, podem incitar ações extremas.
Além disso, estas declarações relembram-nos o quanto a voz dos ateus e dos defensores da laicidade continua a ser silenciada nos meios de comunicação social. Como o João Monteiro referiu, a Associação Ateísta Portuguesa emitiu um comunicado oficial, mas, mais uma vez, a imprensa escolheu ignorar. Esta falta de representação mediática para os 20% da população portuguesa que se identifica como não religiosa é algo que não podemos continuar a aceitar. A nossa luta é pela igualdade de voz e pela defesa de uma sociedade verdadeiramente laica, onde todas as crenças — ou a ausência delas — possam coexistir sem privilégios ou imposições.
Ingerências religiosas no Estado
Passámos, depois, a discutir outra questão crítica: a constante intervenção da Igreja Católica na política portuguesa. Neste momento, o país está em plena discussão do Orçamento de Estado, e membros da hierarquia católica, como o Patriarca de Lisboa, Rui Valério, já se pronunciaram publicamente sobre a necessidade de os partidos se unirem para aprovar o orçamento. Esta intervenção é mais um exemplo claro da linha que a Igreja insiste em ultrapassar, ao tentar influenciar diretamente decisões políticas que deveriam ser completamente independentes de qualquer instituição religiosa.
Nós, enquanto defensores da laicidade, reiteramos que a religião não tem lugar na política, tal como a política não deve imiscuir-se na religião. No entanto, o que observamos é uma Igreja que não aceita esta separação e que continua a tentar recuperar o poder que tem perdido ao longo dos anos. A nossa missão, como Associação, é garantir que a Constituição seja respeitada e que a laicidade seja assegurada em todos os níveis da vida pública.
O escândalo dos abusos e o documentário “As Pupilas”
Outro tema que abordámos foi o recente documentário da SIC, intitulado “As Pupilas”, que trouxe à tona mais um conjunto de denúncias de abusos sexuais e violência física cometidos por membros da Igreja Católica. Este documentário foi mais uma prova de que os abusos dentro da Igreja não são casos isolados, mas sim parte de um problema sistémico que se perpetua há décadas. Tal como mencionámos no episódio, é preciso que estas denúncias não se limitem apenas à Igreja Católica; sabemos que outras confissões religiosas também enfrentam este tipo de problemas, e é fundamental que todos os casos sejam denunciados e tratados com a seriedade devida.
O mais chocante é que, mesmo após todos estes escândalos, a Igreja continua a encobrir casos e a evitar pagar indemnizações às vítimas. No documentário, vimos como, apesar das conclusões da comissão independente que investigou os abusos sexuais, a Igreja continua a fugir às suas responsabilidades. O Papa Francisco pode fazer declarações públicas afirmando que “na Igreja não há lugar para abusos“, mas as ações do Vaticano dizem-nos o contrário. Esta discrepância entre as palavras e os atos não é apenas desonesta, é perigosa.
Arte e ateísmo: a eterna discussão
Outro ponto interessante que discutimos foi a questão da arte religiosa. No nosso podcast, temos discutido como a religião tem influenciado a arte ao longo dos séculos, mas neste episódio quisemos desmistificar a ideia de que as grandes obras de arte só existem por causa da religião. Sim, é verdade que a Igreja foi, durante muitos séculos, uma das maiores financiadoras de arte, mas isso não significa que a arte não existiria sem ela. Muitos artistas criaram obras por necessidade, não por inspiração religiosa, e muitas outras obras de valor incalculável foram produzidas fora do contexto religioso.
Acreditamos que a arte, como a ciência, é uma expressão da evolução humana, algo que vai além de qualquer crença ou dogma. Mesmo nos tempos em que a Igreja detinha o monopólio do poder, havia artistas que criavam obras de caráter secular, que sobreviveram ao tempo e hoje são reconhecidas pela sua importância. Não podemos aceitar o argumento de que a religião foi responsável pelo desenvolvimento da arte ou da ciência; na verdade, foi apesar da religião que a humanidade conseguiu avançar em várias áreas do conhecimento e da criatividade.
Uma comunidade em crescimento
Finalmente, concluímos o episódio destacando o dinamismo que a Associação Ateísta Portuguesa tem experienciado nos últimos tempos. Temos visto um aumento na participação dos nossos associados, seja através do grupo de WhatsApp, seja nas tertúlias online que organizamos regularmente. Recentemente, tivemos a nossa primeira Tertúlia Livre-Pensar, que foi um enorme sucesso e contou com a presença de vários associados que contribuíram com as suas ideias e experiências. Estamos também a desenvolver uma Biblioteca Ateísta, um projeto que visa centralizar obras de interesse para a nossa comunidade, e que tem recebido apoio entusiástico dos nossos membros.
Outro destaque vai para a participação de Eva Monteiro, que esteve recentemente num canal de YouTube brasileiro, os Ativistas Ateus do Brasil, onde discutiu as diferenças e semelhanças entre o movimento ateísta nos dois países. Esta colaboração transatlântica é crucial para fortalecer o movimento ateísta a nível global e promover o intercâmbio de ideias entre diferentes comunidades.
Encerrámos o episódio com uma reflexão sobre o futuro. O ateísmo em Portugal está a crescer, mas ainda enfrentamos desafios significativos, desde a falta de representação nos media até à persistência de preconceitos no local de trabalho, como nos lembrou um dos nossos ouvintes que partilhou a sua experiência de discriminação por ser ateu. É fundamental continuarmos a lutar por um espaço público verdadeiramente laico, onde as vozes ateístas possam ser ouvidas sem medo de represálias.
No Homo SemDeus continuaremos a questionar, a duvidar e a explorar as vastas fronteiras do pensamento crítico. E, enquanto houver crenças a serem desconstruídas e tabus a serem desafiados, estaremos aqui para dar voz a todos aqueles que, como nós, escolhem ser primatas pensantes sem Deus.